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Quatro Sentidos e um Envelope


Em nome da Madalena

A sala estava repleta de gente, cada um com pior cara que o outro e continuavam a chegar. Há horas com muito menos pessoas, mas esta é uma altura muito má.
São seis horas da tarde e quem tinha marcações, foi chegando ao longo da tarde. Quem não tem, aproveita o final do dia, depois do trabalho para tentar ser atendido. No total, estão previstas umas vinte pessoas, pois esse é o número de cadeiras disponíveis. Há sempre a mulher que traz o marido, e o filho que vem com os pais. Se houver mais de dez pessoas para serem atendidas, o mais certo é faltarem cadeiras.

Na parede do fundo, no lado contrário às três janelas de estores corridos, tapadas por longas e grossas cortinas vermelhas, vê-se uma televisão, um moderno aparelho de plasma. Se repararmos bem nas pessoas presentes, não há muitas que se mostrem interessadas no grande écran, quase sem som. O aparelho está sintonizado num canal da Vida Selvagem que está a emitir um programa sobre leões, num parque natural, algures em África. O som está muito baixo e não se consegue ouvir nada. Tratando-se de um canal dobrado, em brasileiro, não tem legendas que permitam acompanhar a narrativa e perde uma parte do seu interesse naquela sala onde todos se sentem surdos. Não parece fazer muita diferença, pois ninguém olha para o écran gigante. Não que seja assim tão grande, mas ultrapassa, sem dúvida, os melhores televisores que encontramos em salas de espera menos equipadas.
Um dos homens ali sentados, olha para as outras pessoas e fixa o olhar de novo no écran. Ele procura algo, mas ninguém percebe. Por fim, cansado de olhar para os leões, levanta-se e tenta alterar o canal. Os botões parecem não responder e o homem refila baixinho, enquanto as pessoas que o observam, comentam também.

- Ele não deveria mexer no aparelho. Há mais pessoas na sala. Nem sequer perguntou nada a ninguém.

Passados dois ou três minutos, o homem, cansado de tentar e não conseguir nada, dirige-se à rapariga que está sentada por trás de um moderno balcão:
 
- A menina desculpe, será que podia mudar o canal da televisão para o canal 4? É que está a dar um jogo de futebol com Portugal e não consigo mudar.
 
- Mas nós não podemos mudar a televisão. Senão, cada pessoa ia querer ver uma coisa diferente e era um problema.
 
- Eu entendo, - insistia o homem – mas se a menina vir bem, não está ninguém interessado na televisão.
 
- Pois, - concordou ela – neste momento estão todos mais interessados em olhar para si. Se reparar no sítio dos botões do aparelho, só existem buracos; não tem os botões lá. Não podemos mudar mesmo.
 
- E não tem um comando que se possa usar? Assim vamos perder o jogo e é dos mais importantes!

A rapariga, com toda a sua paciência, tentou calar o homem que começava a levantar a voz. Por fim, desistindo de tentar demover o paciente aborrecido e chato, mudou um pouco de tom e ela também, ergueu-se um pouco acima do balcão.
 
- O senhor vai-me desculpar, mas isto é um consultório médico, não é um café. Estamos aqui para tratar pessoas e não para ver jogos na televisão. Se queria ver o jogo, devia ter marcado consulta para mais tarde e tinha ficado em casa.

Ofendido, sentou-se balbuciando qualquer coisa sobre o jogo. Dizia ele que se houvesse prolongamento, não chegava a tempo à consulta e precisava muito de ser observado hoje por um médico. A senhora ao lado dele, dizia:
 
- O senhor é que tem de escolher. Ou vem ao médico, ou vai ver o jogo! E olhe que a saúde está primeiro. Jogos há muitos!
 
- E chapéus! – acrescentou um jovem de vinte anos que estava na parede em frente.
 
- Os leões são tão engraçados. – dizia uma velhota, muito velhinha que estava sentada ao lado do rapaz dos chapéus.

A enfermeira, por trás do balcão cinzento e vermelho, sorriu e chamou:
 
- Sr. Mário Antunes? O doutor vai recebê-lo agora. Pode vir que vai entrar já de seguida.

Um homem de setenta e poucos anos levantou-se e andou devagar até ficar perto do balcão, onde a enfermeira Lourdes lhe pediu que esperasse um pouco mais.
 
- Quando a senhora sair de lá de dentro, o Sr. Antunes entra, está bem?
 
- Estou sim, menina, estou bem. – respondeu o velhote, não percebendo a pergunta - Hoje estou muito melhor. Posso ir agora, não é? 

Como o homem era um pouco surdo, realmente mouco, ela teve que explicar tudo outra vez. Quando achava que o homem tinha percebido, a Dona Amélia saiu e o velhote já podia entrar. Mesmo assim, a senhora que esperava no balcão para pagar a consulta, ainda teve que o ajudar a localizar a porta do consultório.
 
- Estas pessoas fazem-me pena. Já nem conseguem orientar-se sozinhas.
 
- Não tenha pena dele, Dona Amélia. Esse senhor vem cá todos os dias, gasta uma fortuna em consultas e não tem problema nenhum a não ser a própria velhice chata. Entra no consultório do Doutor e nem o ouve. Fala, fala, fala, e no fim, sai, paga a consulta, o que me dá algum trabalho a mim, e volta no dia seguinte. O doutor nunca lhe receitou nada, excepto umas gotas para os ouvidos, mas que o homem nunca comprou nem aplicou uma só vez que fosse.

As outras pessoas na sala, as que estavam mais perto do balcão, abanavam a cabeça, como se estivessem lá nos outros dias, como se fossem testemunhas do caso. Algumas delas, seriam, concerteza, mas as outras faziam-no apenas por simpatia. A senhora pagou a consulta e marcou logo a próxima para o mês seguinte:
 
- O Doutor diz que devo cá vir para o próximo mês para ver como estou a reagir aos remédios. Levo aqui uma bela receita para aviar na farmácia.
 
- E sabe que o Doutor não gosta de passar muitos medicamentos! Se o fez, é porque precisa mesmo. 

Tinham ficado tempo demais na conversa e a luzinha debaixo do balcão já estava de novo acesa. O paciente ia sair em breve e Lourdes devia chamar o doente seguinte. Olhou o livro de marcações e chamou:

- Sr. António Moreira, por favor!
 
Acelerou um pouco o pagamento da Dona Amélia e preparou-se para receber o pagamento do velho surdo e chato. Enquanto isso, para mal dos seus pecados, quem era o Sr. António Moreira? O homem da televisão.
 
- Espero que não me demore muito que ainda quero ir ver o resto do jogo. Já perdi aqui tempo demais.

Assim que viu o velhote sair do consultório, abriu o passo e entrou num ápice pela porta entreaberta. O Senhor Antunes lá vinha, calmo e lento, abanando ligeiramente.
 
- Olá menina. Eu no fim do mês pago, está bem?
 
- Sr. Antunes? O senhor já sabe que tem que pagar no final de cada consulta. Ainda ontem lhe disse isso.
 
- A menina diz a mesma coisa todos os dias.
 
- E o senhor pergunta o mesmo cada vez que cá vem.
 
- Quem é que cá vem este mês?
 
- Sr. Antunes? São vinte e oito euros, por favor.
 
- São oito euros pró doutor?
 
- Não são oito, são VINTE E OITO. O senhor já sabe! 

- Ah, vinte e oito e volto no sábado. Qual sábado?

Era desgastante. A enfermeira já tinha jurado em voz alta que um dia desistia daquele trabalho voltava para o seu lugar. Não há pachorra! – dizia ela, enquanto fazia o troco ao velhote.
Ele tinha dinheiro, devia ser uma das pessoas mais ricas de Guimarães, porque começara a ir às consultas há mais de oito meses e tinha outras tantas marcadas para os meses seguintes, todos os dias. A sua despesa mensal passava dos seiscentos euros. Era muito dinheiro por dez minutos de atenção. No fundo, era isso que acontecia: o velho pagava para ser ouvido. Mas, que diria ele?
Lá conseguiu que o velhote saisse, na mesma altura em que chegava outro paciente invulgar. Ninguém sabia o seu nome. Talvez o Doutor soubesse, mas nunca o referira e o homem quando chegava dizia sempre o mesmo:
 
- Diga ao Doutor que eu estou aqui.
 
Era apenas EU. Não dizia nunca o nome, não entregava cartões de visita, nem de saúde, nem qualquer outro.
 
- Diga que sou eu! – era sempre o que ele dizia. Apenas isso!
 
A enfermeira cumpria o que o homem pedia, pois o Doutor tinha-lhe dado indicações nesse sentido. Pegou no telefone interno e avisou o médico:
 
- Doutor, desculpe, está aqui aquele senhor.
 
- ...
 
- Sim, esse mesmo.
 
- ...
 
Desligou o telefone e, virando-se para o homem, pediu-lhe que esperasse cinco minutos que ia entrar já de seguida. Lá dentro, estava o chato dos jogos de futebol e parecia demorado.
O doutor ainda nem acendera a luz de aviso e o homem, encostado ao balcão, deixava transparecer o nervosismo. Sentia-se uma tremideira quando o homem se encostava e abanava as pernas. A jovem balconista ia perguntando se podia ajudar. De vez em quando, o homem perguntava, falando baixo e sem mostrar sinais de antipatia:
 
- Acha que vai demorar muito? 

A enfermeira dizia sempre a mesma coisa, tentando acalmá-lo, enquanto o doutor terminava a consulta que tinha em curso. Por vezes, mas nem sempre, o homem abria a pasta castanha que trazia consigo e mexia lá dentro, como se quisesse verificar que tinha tudo em ordem. Quando apareceu a primeira vez no consultório, Lourdes já sabia que o homem não era nenhum DIM, ou Delegado de Informação Médica.
Não, não era. Nem era apenas alguém que o Doutor recebia sempre e que passava à frente de todos, sem pagar as consultas. Não aparecia todas as semanas, mas quase, numa média de 2 a 3 vezes por mês.
A luz acendeu e Lourdes apressou-se a informar o homem da pasta:
 
- Está quase. O paciente anterior sai em breve e o senhor vai poder entrar.
 
- Obrigado. Vou andando para a porta.

Quando o consultório deixou sair o Sr. Moreira, este cruzou-se com o homem da pasta e não perdeu a oportunidade:
 
- Boa tarde. O meu amigo sabe como está o jogo? Sabe se estamos a ganhar?

O homem nem respondeu, abanando apenas os ombros em sinal de desinteresse. Desviou-se dele com brusquidão e entrou no consultório. Cá fora, ouviu-se apenas uma saudação, na voz do médico que o recebia:
 
- Olha o meu amigo! Entre, entre! 

E a porta fechou-se num silêncio absoluto. Nada se ouvia, nem valia a pena tentar, pois o homem da bola estava no balcão e insistia que a enfermeira devia poder mudar o canal da TV. Depois, achava as consultas caras, mesmo sabendo que estava num consultório privado, numa consulta privada, particular e sem qualquer requisição do Centro de Saúde.
Finalmente, o silêncio voltou à sala de espera e ao hall de entrada. O homem saira. Durante mais de quinze minutos, apenas se ouviam os ansiosos comentários das senhoras mais impacientes:
 
- Será que vai demorar muito? Será que ainda tenho muita gente à frente? Agora era eu. Não era aquele sujeito que chegou agora mesmo e já lá está dentro.

Mas aparte esses comentários disciplinados, o ambiente melhorara e estava agora muito calmo, apelando ao sossego e ao repouso.
A luz mais desejada de todos os pacientes voltou a acender e o homem saiu, novamente de pasta na mão, abanando-a e sorrindo quando saiu sem dizer nada, sorrindo apenas. Lourdes já tinha perguntado várias vezes se havia algum problema com aquele homem, se era naturalmente chato, se aparecia por si mesmo, ou a mando do médico.
O Doutor dizia sempre que eram coisas suas, um conhecimento antigo e que ela o deveria respeitar quando o visitasse. A enfermeira desconfiava do homem, mas pouco poderia fazer. Ali fechada, sempre ocupada quando o homem ia à consulta, se é que podemos chamar de consulta, várias vezes pensara segui-lo e tentar saber mais sobre ele. Brevemente, se não houver nada em contrário.
Distraída, quase deixava o paciente seguinte na sala, não fosse o reparo de algumas senhoras mais oportunas. O homem já tinha saído, mas o dia continuava.

(Excerto do 2º Capítulo do livro "Quatro sentidos e um envelope")


(Heterónimo Jorge dos Santos, com capa assinada em nome de JoSan)

Introdução
Um policial onde nem tudo é polícia, crime e mistério. Um livro onde tudo ganha vida em momentos reais, dividido em capítulos com o mesmo argumento real e cruel: O tráfico de bébés! Uma geografia real e bem localizada, onde tudo gira à volta dum único rapto. A calendarização e referências a datas específicas, dão ao leitor a oportunidade de situar a história em cada capítulo. Único factor comum e evidente: A existência persistente de um envelope castanho. Uma forma diferente de escrever um romance. Como se as câmeras filmassem em simultâneo, geograficamente colocadas e posicionadas para ver tudo, sob planos bem distintos. Para os leitores, são páginas de acção e mistério numa geografia real que muitos reconhecerão. Sem os leitores se aperceberem, estão perante um livro que é lido de forma diferente, em quatro sentidos!

Este livro pode ser adquirido online!
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(Pintado a Acrílico sobre Tela Canson)

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