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Altar de Luxo


Se existem sítios onde nunca antes pensara entrar, a casa mortuária onde me encontro agora é um deles. Não entraria aqui por mais ninguém que não fosse ele. Mesmo assim, os meus frágeis nervos de mulher, feminina, de boa fé, sentem-se abalados pelo mórbido ambiente que me envolve.
Não sou a única personagem viva deste quadro, mas não vejo em mais ninguém a expressão de alegria e felicidade que deve transbordar dos meus olhos como a luminosidade da água.
Num olhar vago, apercebo-me da familiaridade dos rostos secos e inexpressivos que me acompanham. Todos eles, de uma forma ou de outra, estão ligados ao meu passado; recordo-os por breves instantes, nos seus melhores dias, nas suas melhores fases. É-me facilitada, assim, a tentativa de lhes perdoar a acusação de insensível que a sua própria insensibilidade me dirige.
Deixo que os meus olhos prefiram, ao invés dos olhares das velhas que me observam dos tornozelos aos ganchos que uso no cabelo, as pálidas e trementes luzes de duas velas que alguém acendera num canto.


As sombras provocadas pela fraca luz das candeias, exaltam-me ligeiramente algumas sensações mais desagradáveis, como o são, o receio das almas e a insegurança que o medo provoca nos meus passos.
As duas velas acentam sobre brutas bases de ferro forjado, envelhecido pelo tempo e escurecidas pela sujidade que se faz sentir, desde o rodapé junto à porta, até ao pedestral onde está colocada a urna.
Ao vê-la ali, bem na minha frente, fico extremamente aliviada, dando por finda a minha solidão. Tenho que aguardar a vinda do padre local; virá abri-la para que, assim, todos aqueles seres estranhos possam alimentar-se das falsas lágrimas que derramam.
Quanto a mim, sou sincera ao afirmar que apenas quero vê-lo, tocar-lhe nas mãos e despedir-me dele. Para mim, a felicidade que me invadira desde a minha tomada de consciência sobre a sua morte, impede-me de o acompanhar à sua última moradia.
Rejeito absolutamente a ideia de ver deitar sobre o mesmo corpo que tantas vezes beijei e amei, a cal branca dada aos mortos. O enterro é qualquer coisa para a qual não me sinto preparada.
Socialmente aceite pelo meu mecanismo pensante de mulher, um pouco orgulhosa nos seus sentimentos, tenho de discordar com a forma como os corpos são tratados. Basta-me pensar nisso para que o meu cérebro se entorpeça.
E prefiro pensá-lo a vê-lo. As maravilhosas noites que passámos juntos na nossa casita de duas assoalhadas, estão presentes também; com elas, vêm todas as deliciosas recordações que uma mulher pode ter. E que paixão viveu a mulher que amou, sempre, na pobreza do lar que ambos dividiram e partilharam sem deixas nem queixumes. A pobreza em que sempre viveramos aumenta com a sua morte. Não pelo modesto funeral de terceira que lhe posso oferecer, mas porque era ele, também, o único assalariado da casa. O mundo também ficou mais pobre. Ganhava tão pouco que mal chegava para as nossas básicas necessidades. Mas sempre soubera proporcionar-me os mais belos momentos que uma mulher pode viver ao lado de um homem, terrivelmente meigo e terno para a não ver como objecto sexual. Sempre me respeitou, como mulher e ser humano. Com as suas doces e ásperas mãos calejadas pelas caixas do seu ofício, acariciava-me as faces como se tentasse sentir, um por um, os poros da minha pele.
Um eterno sorriso vivia nos seus lábios gretados, onde os meus beijos foram depositados muitas vezes em muitos anos.
Chegado da reunião sinodal, o pároco da igreja, abre a urna para a missa de despedimento com a família. Retiro-me para o exterior e acendo um cigarro numa vela cá fora. Enquanto fumo, recordo o carinho com que ele acendia e fumava cada cigarro da sua vida; sempre apreciara uma boa marca, como fazia com os vinhos. Não, apesar de tudo não era fino; o simples gesto de levar um cigarro aos lábios, tinha para ele a mesma importãncia que todas as outras coisas na sua vida.
Fazia sempre tudo como se fosse a última vez que lhe era permitido fazê-lo. Quando acabavamos de fazer amor, e isto acontecia-me quase sempre, sentia-me tão cansada e tão preenchida que ficava normalmente, ou com a sensação que nos despediamos por algum tempo, ou com a de que nos encontrávamos eternamente na noite de núpcias.
Não suporto que esteja ali enquanto o padre dá a missa aos outros crentes. Se é que são crentes, pois também ele, como eu, nunca acreditara muito nessas coisas. E se nos casámos pela igreja, não foi pelo aspecto religioso da fé e do casamento, mas pela liberdade que tão humilde matrimónio ofereceria no seio da família. Os pais dele sempre desejaram o nosso casamento; os meus, nem tanto. A nossa vida era cheia de dificuldades. Os meus pais achavam que deveria casar com um homem que me pudesse dar uma vida cheia de luxos e prazeres e, nunca, com um pobre servente da fábrica onde nem os ordenados são dignos.
Entrei de novo na sala quando o padre saiu de volta à igreja. Os olhos cínicos e perversos que me observavam à porta da casa mortuária, olham agora espantados pela minha dedicação relativamente àquele que tinha sido o meu companheiro durante muitas horas de vida difícil, mas agradável.
Não quero de forma alguma perder tempo com os outros. Olho, com a suavidade que só ele me poderia ter ensinado a olhar, para o seu rosto calmo e tranquilo. Não mudara nada, à excepção da cor morena da pele que, com o passar das horas, acabaria por dar lugar a um amarelado de que sempre me falaram como difícil de observar e definir. Sei que não é a sua cor mais bela, mas o eterno sorriso que ainda transporta nos lábios, esquece-me rapidamente dos seus menos agradáveis aspectos; seca-me as lágrimas brilhantes que a felicidade ilumina no meu queixo. Não me preocupa a pobreza material que me sobrecarregará para o futuro. Agora sei que nada mais desejo; que a vida pode terminar para mim, também, pois minhas lágrimas de alegria comprovam toda a beleza do meu passado.
Não choro por ter morrido, nem sequer por não poder tê-lo mais. Choro, e isso sim, pela alegria de poder ter tido uma linda vida a seu lado, curta mas completa. Não lamento a sua morte, pois sei que nada mais podia fazer em vida. Tinha sido, entre tudo o que foi para mim, uma pessoa maravilhosa em quem os olhitos castanhos transpareciam toda a verdade do espírito sensível que absorvia. Os seus cabelos sedosos, continuam com o mesmo aspecto limpo e aprumado com que sempre os conservava.
Num gesto mais impulsivo que pensado, abstraí-me do ambiente circunvizinho e peguei-lhe numa das mãos. Ao contrário do que sempre pensara, o frio das suas mãos não me impressionou, pelo menos negativamente; não pude deixar de associá-lo ao primeiro que dirigiu ao meu corpo, no dia em que me pegou nas mãos para me desvendar o amor que nutria por mim. Nessa tarde, tinha as mãos frias, muito frias, geladas pelo frio da neve que caía de manhã cedo. Mas não deixei de senti-las como se acariciasse uma teia de aranha muito íntima.
Agora, o frio das suas mãos, não está na temperatura das mesmas, mas sim na inactividade sensitiva com que se encaixam nos meus dedos magros e compridos.
Sorri extático enquanto eu deito um olhar mais crítico pela sala; nenhum daqueles estranhos seres humanos saberia rir como eu agora sei fazer. Lanço uma gargalhada para o ar e sinto, nas minhas costas, as marcas penetrantes das agulhadas que os seus olhares me dirigem, perfurantes. Não compreenderão nunca o valor das palavras que eu tantas vezes ouvi da sua boca, os seus sinceros e verdadeiros olhos castanhos, os seus lábios rosados, não tão grandes como seria normal num homem da sua estatura.
Sei das reacções que ele teria se viesse a encontrar-se no meu lugar. Muito antes de eu ter dado o meu esgar de gozo, já ele o teria feito com muito mais potência e intensidade.
Duas das mãos que, nos bolsos das calças, se ocupavam de velar o velório dos outros (os outros, por sua vez, fazem o mesmo), duas dessas mãos vêem até mim e agarram-me com uma irónica doçura. Os seus olhos grandes e claros fitam-me no mais recôndito das minhas retinas.
Como se quisesse dizer-me que aquilo não se faz num lugar destes, puxa-me para si e, ao encostar-me a cabeça no seu ombro, sussurra-me que saia um pouco; aconselha-me, como aliás sempre fizera desde que casara com o filho.
Acho que pela primeira vez em muitos anos, os meus olhos secaram rapidamente para assumirem o ar violento e agressivo que é comum ver-se num homem bêbado, que não encontra na mesa, ao chegar a casa para jantar, os seus feijões preferidos. Vira isto muitas vezes no meu pai, quando chegava a casa, perdido no vinho de todas as tabernas do quarteirão.
O pai dele, fita-me severamente, como se fosse capaz de me bater caso começasse de novo a rir. Decido não lhe fazer a vontade; o desgraçado do brutamontes era capaz de fazê-lo, certamente, quanto mais não fosse para salvar a honra do filho.
Como esposa dedicada, como companheira, mulher, tomo a meu cargo a defesa dessa mesma honra. Por um curto espaço de tempo, aclaro dentro da minha cabeça despenteada e desarrumada pela ocasião, as imagens da vida que ele me dera sempre a sentir; a força interior que me ensinara a conseguir para vencer as dificuldades; a esperança no futuro e a crença numa só ocasião para cada vida.
A sua completa e bem preenchida existência, não faria supor uma morte tão vulgar como a que tivera num acidente de viação.
É-nos sempre fácil aceitar que meio mundo morra debaixo de um carro-eléctrico ou de um autocarro, mas quase impossível acreditar que, num dia lindo como o amor que o envolvia, o telefone do hospital tenha uma notícia dessas para nos dar.
Para conseguir acreditar na morte, estou aqui a seu lado, agarrada pelas fortes mãos do meu sogro, que me impede de rir da morte, como se defendesse a sua ironia perante a vida. Já assumi a defesa da minha posição e não é agora, que o seu olhar afrouxou um pouco, que vou abdicar de fazê-lo.
Deito, como gostaria de fazer para sempre, um rápido olhar àquele corpo quieto, frio e firme, que ainda se me revela como se estivesse preenchido por uma enorme fonte de vida.
No íntimo do meu ser, beijo-o loucamente, revivendo por momentos, o primeiro e o último beijo; aliás, de certa forma, torna-se difícil separá-los dos outros; qualquer beijo dele tinha a intensidade do infinito, tal era a profundeza com que sempre beijava.
Tendo-me certificado que tudo estava bem com ele, e agora tudo está bem para ele, abro as goelas, como duas janelas num castelo enorme, e grito como quem tenta encher de som tão abundante palácio. Sinto que os gritos nascem dentro de mim, uns após os outros, mal um acaba e se perde pelo ar enebriante da sala. Permito-me gritar como nunca havia feito. Praguejo, acuso, ofendo, arranjo maneira de correr com toda aquela gente dali para fora.
Excomungados no seu mais profundo ser, sairam para o exterior, olhando-me como a uma louca. Um ou outro, avançam para mim numa tentativa de me agarrarem. A base de uma das velas serve-me de arma de defesa e, após ter-me assegurado que não existia mais ninguém, além de nós dois, fecho as portas da casa mortuária onde nunca antes pensara entrar; agora, ali estava eu, desesperada, perdida num mundo insensível que não via desde o dia que o conhecera. Nunca tivémos filhos, pois a natureza mo negou, mas também, se hoje digo que gostava de ter um filho, era talvez por assim me sentir mais perto dele; talvez porque gostasse de fazer dum filho meu, uma pessoa tão sensível, carinhosa, humana, maravilhosa e completa como o pai. No entanto, nunca senti a falta desse filho; sempre o vi a ele como um todo, desde o marido possessivo e amoroso, até criança alegre e brincalhona. Até o lugar do filho que não teria nunca ele havia preenchido. Agora, sinto claramente a falta dos dois.
Não estou triste, mas feliz com o seu descanso. Se o tempo de vida que teve foi curto, foi concerteza muito bom. Recordá-lo-ei como alguém que foi feliz todos os dias, e que sempre me fez feliz também, vinte e quatro horas por dia. Levou da vida tudo o que uma pessoa pode desejar.
Vejo-o com uma expressão de alegria tão forte que não posso deixar de o abraçar. Depois, rápida como até aqui nunca tinha sido, dispo-me das minhas poucas roupas de Verão e deito-me a seu lado. O calor do meu corpo desejoso, anula ligeiramente a frescura que irradia da urna, branca por dentro, aberta para a luz das velas. Agarro-me a ele e beijo-o; não me é difícil fazê-lo, pois muitas vezes o beijei quando dormia, sem que desse por isso.
Lá fora, na rua, o barulho concentra-se em torno da porta, mas não posso acompanhá-lo. Sei do trabalho que lhes dará tirar a tranca que consegui colocar na porta.
Acendo um cigarro, como era hábito nas minhas noites de insónia e passo suavemente uma mão pelo meu ventre. Beijo-o novamente e volto a olhar para a porta. O barulho lá fora afrouxou um pouco; possivelmente foram buscar os bombeiros, ou a ambulância para me levar ao manicómio.
Recordo, de novo, os passos suaves e silenciosos com que habitualmente me abraçava pelas costas; os seus longos e delicados braços de estivador fabril, acariciavam-me os seios e o ventre para, em seguida, me erguerem no ar e me conduzirem ao leito. Não, não era um homem bruto e apanhado pelo prazer; apenas me conhecia bem e sabia quando me deveria satisfazer. Ao mesmo tempo, recordo umas piadas que habitualmente se contavam nos meus tempos de adolescente. Será possível que os corpos quando morrem possam ficar de sexo erecto e firme? Apresso-me a verificá-lo, desiludida. Se é possível, eu não tivera tal sorte.
Não me preocupa o poder ser considerada louca, pois o mundo para mim acabou com a sua morte. Queria realmente senti-lo erecto e rígido, como normalmente se encontrava depois de acariciado com ternura.
Não o amava pelo sexo que frequentemente praticavamos, mas sentia necessidade dele, como se negasse a sua morte. Saltei para o chão e senti o frio da pedra nos meus pés. Depois, com cuidado, lenta e carinhosamente como se não o quizesse acordar, despi-lhe toda a roupa e deitei-me, de novo, a seu lado. Apesar do rigore mortis do seu corpo, peguei-lhe na mão e, com ela, acariciei o meu corpo. Deleitei-me com prazer, como se fizéssemos amor pela última vez. Rebolei sobre o corpo inerte e senti-o entre as pernas; entreguei-me aos prazeres da carne e fiz das minhas mãos o seu sexo.
Quando senti que as forças me abandonavam, apoiei-me sobre a urna e ergui os ombros ao Céu. Olhei para baixo e vi o seu eterno sorriso, como se o prazer que sinto fosse o seu. Levantei o queixo, enquanto os últimos impulsos de prazer tremiam nas minhas costas, arrepiando-me, e soube nessa altura que a minha vida estava completa; que com ele, vivo ou morto, sempre vivera num verdadeiro altar de luxo.

(Quadro pintado com Técnica Mista sobre PVA)

Este trabalho está incluído no Capítulo 3 do meu romance de ficção "Cai-me em cima por favor", escrito, mas ainda não concluído e publicado por falta de revisão e pouco mais. Está assinado por Helena Cassilda, um dos meus heterónimos que já partiram de vez! 

 (Capa do livro, da minha autoria, assinada JoSan)

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