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PHARMAKA


Uma mão forte e de veias salientes agarrou o corrimão da entrada, na estação de metropolitano em Long Beach. Num gesto brusco e impetuoso, o braço ao qual a mão pertencia, ajudou o resto do corpo a saltá-lo de uma só vez, num arco amplo e rápido, projectando o tronco e as pernas para o outro lado da passadeira. Era como se de um atleta de alta competição se tratasse; como se o corpo pesasse apenas vinte ou trinta quilos, ou aquele braço tivesse a força de uma dezena de homens bem constituídos. No mínimo, o jovem que transpunha daquela forma menos comum, a barreira que separava a área de rua, e final de escadaria, do verdadeiro átrio da estação, era um “corredor de rua”, um FreeRunner; praticante de um desses novos hábitos radicais, a que chamam desportos, e que invadem a cidade de jovens que saltam e pulam como coelhos e cabras, pulando sobre tudo e todos, não parando na presença de um abismo, nem de um muro com muitos metros de altura.

Um agente de segurança, fazendo serviço no metro, segurou-lhe um dos ombros com firmeza, mas largou-o quando o jovem se defendeu, recuando bruscamente e dizendo procurar apenas a bilheteira para comprar um passe; no fundo, não violara nenhuma área restrita, ou paga; apenas saltara um varão, um simples corrimão.
De olhos no rapaz, um jovem alto, atlético e desportivamente bem vestido, que usava roupas de marca e muito novas, o segurança acompanhou-o até à bilheteira. Segundos depois do momento em que o saltador com pouco mais de vinte anos, chegara perto da cabina, o funcionário dentro dela parecia começar a ficar farto de estar à espera. A fila por trás do jovem crescia depressa apesar de não ser hora de ponta, enquanto Richard Woodland procurava nos bolsos as notas pequenas que tinha colocado num deles. O rapaz de Long Beach sabia antecipadamente que o passe diário que incluia as viagens de Metro e Autocarro em Los Angeles custava apenas 3 dólares, mas parecia não encontrar as quatro ou cinco notas que tinha enfiado num dos bolsos das calças.

- É o que faz usarem essas calças modernas cheias de bolsos e com as cuecas de fora. Qualquer dia começam a vestir os boxers por cima das calças! - comentava o empregado da estação, dentro da cabina metálica e com a metade superior fechada por vidros fortes

- Se fosses meu filho não andavas assim vestido. Bolsos a mais, pouco trabalho e cérebro a menos. Já para não falar do dinheiro que parece não teres!

Richard olhou para o segurança, sempre presente ao seu lado com cara de poucos amigos, e apeteceu-lhe chamar Negro do Bronx ao empregado da bilheteira; conteve-se exactamente no mesmo instante em que encontrou o bolso onde guardara as notas de um dólar, apressando-se a atirar com três delas bruscamente para cima do balcão. O seu gesto descontrolado, fez com que uma das notas caísse no chão aos pés do empregado da bilheteira.
O homem de lábios grossos e nariz largo, com toda a sua expressão negra e volumosa, olhou para ele com despeito e de olhos enormes e bem abertos em sinal de ameaça, ou imposição de respeito. Baixou-se para apanhar a nota caída no chão da cabina e Rick Woodland devolveu-lhe o mau humor, ripostando:

- Então? Demora muito a dar-me a merda do passe diário? A fila continua a crescer e agora não sou eu quem está a atrasar o serviço!

O homem levantou-se com as três notas numa das mãos, e usando a outra, retirou um dos títulos de viagem que tinha na gaveta de ferro da caixa de serviço. Bateu com o passe violentamente sobre a pequena prateleira em frente à abertura do guiché. Depois, olhou para o segurança ao lado do rapaz, como que dizendo: “As coisas que nós temos que aturar”.
Richard afastou-se em direcção à Linha Azul e esperou pela primeira composição de metropolitano que parasse na sua frente. Sabia que era preciso estar atento durante a viagem, porque iria mudar para a Linha Roxa pouco depois de iniciar a viagem; eram essas as indicações que alguém lhe tinha dado: “Mudar para a Purple Line e sair na Pershing Square Station”. Depois, andaria ainda mais uns três blocos a pé. Se tivesse alguma dificuldade em situar-se, era só apanhar uma das carreiras de autocarros MTA com os números 52, 60 ou 360 e sair na paragem principal da 7ª Rua, a 7th Street. Palmilhando durante mais dois quarteirões na direcção Norte, chegaria à quinta rua, a 5th Street e, simultaneamente, ao seu destino: a Pharmaka.
Tigi, a sua mais recente amiga e a quem se atrevia a chamar de namorada, tinha-lhe dito que o esperava na Pharmaka e Richard, ansioso e carente, imaginava que tal ponto de encontro fosse uma das farmácias aderentes, um local de satisfação e pertencente à rede Lignum Crucis. Mal sabia ele o que o esperava e o que era, afinal, a tão insistentemente referida e relembrada Pharmaka.
O que era na realidade, Richard não sabia nem sequer conseguia imaginar, embora desejasse muito que fosse uma farmácia do Grupo Papaver, pertencente à rede Lignum Crucis, a principal distribuidora daquilo mais precisava neste momento: uma dose de igX. Mas a Tigi, ele já conhecia bastante bem, apesar de estarem juntos há muito pouco tempo. Chama-se Tina Gilmour e é uma linda rapariga de vinte anos, muito irreverente e nada parecida com ele. Se Richard usa calças largas e muito na onda dos Rappers americanos, de marca recente, muito jovens e tão caras quanto a camisola que veste e que o transforma num freak desportivo, usando um relógio de marca tão conceituada no pulso que só não é um risco exibi-lo em público, porque ninguém acredita que um jovem que anda de metro e autocarro, aos saltos pelas ruas da Cidade dos Anjos, possa transportar no pulso um mostrador de três mil dólares. As lojas de contrafacção existem nos bairros mais escuros da cidade e o tráfico de roupas roubadas é tão intenso que os seus ténis Nike de duzentas notas, parecem uma rasca imitação de dez dólares mal gastos.
Tal como acontece com Ricky, também a sua querida, rebelde e apaixonada amante de braços completamente tatuados e envergando alguns piercings espalhados pelo corpo magro e esbelto, veste no corpo a fortuna do tio que a sustém desde criança. Da mãe, sabe apenas que morreu durante uma transfusão de sangue, uma coisa simples que correu mal, quando tentou fazer uma desintoxicação por excesso de álcool e drogas. Desde essa altura que o tio Louis Lucaster cuida dela e dos seus vícios. Só ele lhe chama Tina ou Tina Gilmour, em memória da mãe que tinha o mesmo nome, porque na prática e no papel, Tigi nem sequer se chama Tina. Vive na confortável sombra de ser sobrinha de um dos maiores actores de Hollywood, um homem originário de famílias açoreanas, ilhas onde nasceram os seus pais e que cedo abandonou o nome de nascença para ser conhecido e anunciado ao público como Louis Lucaster, um americano de 57 anos que fazia furor no momento, e que enriquecera à custa dos elevados honorários que conseguia cobrar por cada peça que fazia em palco, ou por cada hora de filme que saía para as telas de cinema.
Neste momento, Lucaster estava em cena com a peça WSS-For-One, uma versão trabalhada e extremamente inteligente do famoso e tão banalmente conhecido West Side Story, mas adaptado para um monólogo musicalmente discreto da peça, com apenas um actor em cena e uma extravagante companhia de bailado por trás. A música fora entregue a um maestro clássico do submundo, desconhecido e decadente, mas que estava a fazer furor na cidade pela estonteante adaptação que fizera do antigo musical para um ritmo mais Vivaldiano e sobre o qual Louis Lucaster tão bem representava a peça.
Era ele que pagava as contas e as drogas que a sobrinha Tigi consumia regularmente. Pelo menos, era isto que Ricky sabia e foi graças ao tio dela que Tigi e Rick se conheceram, numa noite, nas traseiras de um bar punk e escondido. Tudo aconteceu num bairro muito longe do teatro onde, por coincidência, ambos foram ver o WSS-For-One pela primeira vez, e ficaram sentados lado a lado na plateia. A excentricidade do aspecto da rapariga de calças de ganga pretas, cinto de couro largo e cheio de argolas metálicas reluzentes, mostrando um umbigo com uma estrela negra tatuada, brilhava quando as luzes de palco incidiam sobre ela e, a pouco e pouco, Richard foi reparando nos braços artisticamente tatuados com cores muito vivas e luzidias, representando flores e pássaros em imagens muito belas; demasiado belas para tão sinistra personagem.

 
(Quadro pintado com Acrílico sobre Cartão Telado)

Este trabalho é o 1º Capítulo do meu romance de ficção "Anticorpus", escrito, mas ainda não concluído, nem publicado. Está assinado por George Saints, o meu heterónimo de origem estrangeira!

(Capa do livro, da minha autoria, assinada JoSan) 
(Ainda não disponível para compra e assinado pelo heterónimo George Saints)


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